26 agosto, 2008

Naquele eu distante

Naquele eu distante habita um menino, veste fato-macaco de ganga azul barata. Feito pelas mãos de uma costureira de quem não me lembro. Tinha um bolso no peitilho para guardar os sonhos a estrear. Tapava um corpo franzino, de pernas esguias a correr atrás do arco.
Um par de olhos que voavam, duas mãozinhas irrequietas tal como a mente. Estou a vê-lo a trepar à ameixoeira por altura do Santo António, sentava-se num ramo e deliciava-se com aquelas suculentas ameixas. As borboletas e as abelhas eram suas companheiras de repasto.
Aqueles aromas tão intensos, o calor do Verão, aquele olhar azul sempre a pique para céu, naquele quintal do passado. Momentos tão breves como intensos, feitos de alegrias distraídas. Felicidade ingenuamente pura. O resto do mundo era bem mais pequeno que o seu. Um pequeno universo delimitado pelo tocar do céu nos montes circundantes. Mas tão suficiente para crescer e sonhar.
Havia nesse tempo uma avó, tão magra como o menino, vergada ao peso da idade, que lhe cozia pequenas broas no forno, recheadas com petingas e azeite lá de casa. Um petisco de lamber dedos e fermentar sorrisos de contentamento. Quanta gratidão avó Maria.
O menino cresceu, e tem agora tantos eus, muitos ainda meninos. E de tanto que é preciso para crescer, há um pouco de tudo, dentro dos meninos que cresceram dentro de mim, muitos ainda meninos. No Outono havia castanhas em Vale de Salgueiro.

Branco é o mural onde deixo as minhas confidências.

18 agosto, 2008

Sentir como quem vê

Neste viver às vezes morno, um estado de nem vida nem sonho. Nem mágoa nem amargura. Nada. Desligado. Vou a terraço ver-o-mar, vou ver por que preciso de ir. Vou por que ver me é importante. Depois vagueio nas palavras. Vagueio nelas por necessidade.
E por não acreditar que um corpo seja capaz de reter uma alma, e por acreditar; que uma alma será sempre capaz de evadir de qualquer cativeiro. Por tudo isso e por sonhar também, esvai-se a sombra dentro do peito. Se a ciência fosse exacta, exporia todas as verdades, e nada restaria por descobrir.
Não raras vezes, sou acometido pela angústia, de não sentir mais do que sou capaz de sentir. E muitas vezes o que sinto está tão longe, por que, muitas vezes o que mais se sente é longe. É como se de um universo de verdades incógnitas se tratasse.
Agora observo a minha gata estendida ao sol, e o escrever alcança alguma ternura. Experimento fechar os olhos também, em busca do requinte na escrita. O leve toque das pálpebras agrada-me, e uma brisa subtil emoldura-me o rosto.
Entardece a esta hora, recordo as videiras a trepar os salgueiros, nas margens daquele rio distante, quase remoto. E sinto como quem vê, o miolo do bago espremido pela ponta dos dedos, a saltar para dentro da minha boca infante.
E fecho de novo os olhos, num êxtase de conter vida, e sonho. Habitará para sempre dentro de mim, aquele sabor a melão maduro, das uvas colhidas nas videiras a trepar salgueiros, à beira daquele rio quase remoto. Neste fim de tarde quase solene, entretenho-me a escrever como quem sente. Um sentimento eterno, e nada mais, uma leve substância do espírito, contudo; a verdade.

Se eu deixar de sentir como quem vê, deixo de estar vivo.

Dito por quem sabe e sente

Vanessa Fernandes acusa atletas de desconhecerem o significado de alta competição
A vice-campeã olímpica de triatlo Vanessa Fernandes considerou hoje que há atletas portugueses que ...

A vice-campeã olímpica de triatlo Vanessa Fernandes considerou hoje que há atletas portugueses que desconhecem o significado de viver em desporto de alta competição, como em Pequim'2008. "A alta competição não é brincadeira nenhuma. Não é fazer meia dúzia de provas, andar a receber uma bolsa e está feito. Muitos não vêem bem a realidade das coisas. Não têm a noção do que isto significa. Se calhar por termos facilidades a mais", criticou. Quando vários elementos da Missão de Portugal nos Jogos Olímpicos têm dado as mais diversas e originais desculpas para o falhanço desportivo, a medalha de prata faz questão de se distanciar de alguns comportamentos. "Nunca na vida vinha para aqui para viajar e ver os Jogos. Para isso não vinha. O meu pensamento nunca foi assim", vincou, defendendo, em tom de brincadeira, que no fim dos Jogos Olímpicos se deveria fazer a avaliação a cada atleta. As declarações de Vanessa Fernandes surgem no mesmo dia em que o presidente do COP, Vicente Moura, pediu "profissionalismo e brio" aos atletas. A atleta do Benfica citou exemplos de falta de ambição: "É que há pessoas a quem lhes é igual ficar em 50º ou 20º ou o que quer que seja. Nunca pensaria assim. Até ficava desiludida se pensasse dessa maneira. Os resultados é que me dão ambição para fazer melhor para a próxima. E nunca estou satisfeita". Vanessa Fernandes diz que muitos não entendem o que é a alta competição: "É como um trabalho. Tem de ser feito. Devemos trabalhar para o que fazemos, no meu caso o triatlo. Há dificuldades em Portugal em entender isso". "Na alta competição deve haver objectivos concretos, pessoas em quem confiar a 100 por cento e nunca fazer as coisas só por si próprias. Ter sempre uma boa equipa, saber o que se quer, onde se está e o que significa alta competição", reforçou. A vice-campeã olímpica considera que às vezes não há pressão suficiente sobre os atletas no sentido de os fazerem perceber a realidade, "o que é pena, pois temos muitos talentos". "No atletismo, natação... o Tiago Venâncio, para mim, podia ser um grande atleta. Mas não há uma estrutura fixa nestes sectores, é tudo à balda, o que é pena", exemplificou. Do lado oposto, destacou o "trabalho e procura dos limites" no quotidiano de atletas da estirpe de Naide Gomes e Nelson Évora. Vanessa Fernandes considera mesmo que os actuais atletas são "privilegiados" e falou do seu caso, onde conseguiu tudo o que queria em termos de descanso, alimentação, treinadores, equipa de treino e apoio da família e amigos: "Que mais posso querer?". "Nos tempos do meu pai (Venceslau Fernandes, vencedor da Volta a Portugal em bicicleta em 1984) poucos eram capazes de competir assim. Era trabalhar para ganhar dinheiro e treinar por gosto. Admiro-o por tudo o que conseguiu como desportista, pois na altura não havia condições", disse. Esse é um dos motivos pelos quais também dedica a medalha ao pai: "É uma homenagem ao trabalho que fez, ao que competiu e às dificuldades que passou. Tudo o que conseguiu e me deu. Agora retribuo com esta medalha".
Depois deste desabafo feito por uma campeã da humildade, nada mais haverá para dizer.
Imagem e texto retirados daqui.

14 agosto, 2008

Meia-lua me basta

Meia-lua me basta, meia-lua uma ilha iluminada, um cais atracado, um navio ancorado, três ondas de ternura e meia-lua me basta. Nas dobras do manto da noite senhora dos sonhos. Estou calmo, sereno. Esplendor sem abismo, sossego. Desconheço o efeito do ópio, mas conheço o dos silêncios. Alguns permitem-me viver horas de outro modo impossíveis. Silêncios bordados de olhos.
Umas vezes o meu amor é longínquo outras vezes à beirinha. Umas vezes brisa calma outras vezes movimento inquieto das levadas. A desabar em cascatas nas encostas escarpadas. O tempo a escorrer e eu não penso em medi-lo. Por hoje amanhã também podia ser noite. Sonho suave a bebericar horas e meia-lua me basta. E o amor ali pendurado naquele cacho de buganvílias.
O viver ali diante de mim, no movimento parado dos arbustos. A nossa pele perfumada do mesmo sorriso. E os nossos braços entregam-se distraídos. Os lábios a pender do silêncio quase se tocam, os olhos chegam sempre primeiro e beijam-se. Aninhados num roçar de almas e meia-lua me basta. O teu sorriso abre-se num lírio branco.
A carne está presente, apenas como um eco longínquo, diluído em odores. Por agora, dela não sentimos saudades. É assim nos momentos em que não pisamos o chão.

Meia-lua me basta.

03 agosto, 2008

Por ora nem pensar

Há páginas preenchidas de dias pobres, coisas magoadas por via da desilusão. Há vivências que não sendo minhas, o são, como se eu; as viva quando as sinto, vejo. Um jogo da cabra-cega de olhos destapados, subterfúgios escondidos em almas iguais. No lusco-fusco das consciências, no intervalo dos erros, assim, bando de pardais, com grãos de acaso no bico, somos.
A boneca colorida de cores quentes, talhada na vagem gigante de alfarroba, vinda de uma ilha do pacífico, passa os dias pendurada por um fio de nylon, numa das extremidades da estante. Toda ela silenciosa, de olhar vago, talvez sinta saudades da sua terra. Não sei, não lhe consigo aparar um sentimento bem definido, um perfume musical, ou um ruído vago, é demasiado estática e triste. Se alma lhe foi dada, esta por certo a abandonou. Aqui fica registado este momento monótono, um divagar sem pressas, sem tristeza, sem desalento, e monótono sem que eu descubra a razão.
Talvez falta de eu saber como conduzir o pensamento, a matéria-prima existe, só que, de momento, não sei como lhe dar forma. É um vaguear de escrita, perdido, mas liberto, vadio. Uma paisagem incerta e eu um figurante ocasional. Sou um sem-vergonha intelectual, sem que me incomode de o ser, sempre que me apetece alinho palavras, como quem alinha flores em canteiros.


Era de esperar que agora aqui registasse um pretenso pensamento,
mas não; por ora nem pensar.