26 julho, 2008

Às vezes também escrevo histórias

– Que estranho; reparaste? O cliente pediu-me um carioca de café e um pires de azeitonas. Já trabalho nisto há tanto tempo e nunca me tinham feito um pedido assim. Sabes; as pessoas andam tão estranhas.
– Há dias um cliente disse-me que queria deixar uns quantos cafés pagos para umas pessoas amigas. Fazia anos no dia seguinte; disse-me. Depois disso nunca mais o voltei a ver. Passados uns dias, uma dessas pessoas a quem ele tinha oferecido os cafés, tomava café e lia o jornal. Ficou estarrecida, de olhos a saltar das órbitas e mudou de cor. Numa das páginas do jornal vinha a fotografia do tal senhor, e por baixo a notícia de que se tinha suicidado.
– As pessoas andam mesmo tão estranhas…
– Sabes; vejo fome na cara das pessoas.

– Sei! A fome vai para além da falta de alimentos, a fome a cada dia que passa, é muito mais do que dor física. É mágoa. Solidão. Tédio. Sensação de impotência. Morte por desistência.

Os rostos das pessoas estão cada vez mais ausentes de feições. Vestem um ar de sofrimento. Um ar a expor angústias e privações. Traços de indiferença de quem muito sofre. Há um modo social de estar perito em criar guetos humanos, pulverizando almas de alheamento, inércia e afastamento. Agora medito; o cursor a piscar e eu a coçar a cabeça da minha gata. Ela ronrona e depois lambe-me a mão.
Afectos claro, está bom de ver e muito melhor de sentir. Também eu às vezes tenho a sensação de que em tudo o que digo, nada tenho para dizer. Mas só às vezes; acho eu. Vida cerebral. Gosto de pensar o amor como um acto de bordar sentimentos. Gestos simples de criar bem-estar partilhando. O amor exacerbado complica tudo; assim o penso. Vida sentimental. A minha contemplação vai para além da estética, não me custa nada assumir que de algum modo há uma fé que me move. Não faço questão de a enquadrar nos padrões convencionais que definem fé. É a minha, naturalmente semelhante à de muitos outros. Sei de um destino igual para todos nós, ainda que por caminhos diferentes. Fé não é matemática, é algo abstracto dotado de força que nos faz mover. Também eu faço os meus retiros mesmo não sendo eremita. Vida espiritual.
Vou aos poucos descobrindo de onde vêm as dores que às vezes me atormentam e cuja origem desconheço. São coisas que o meu olhar regista, a minha mente guarda e a minha alma acusa. Depois as pessoas sentem necessidade de me contar coisas. Eu, sempre que para isso me sinto capaz, empresto-lhes as minhas orelhas. Precisam de aliviar o peso da memória e da consciência. Às vezes um fardo demasiado pesado. Eu compreendo-as, não raramente necessito do mesmo remédio. Só que tenho alguma vantagem em relação à grande maioria delas; escrevo.
As minhas virtudes são dúbias e os meus vícios incontáveis, o que não me impede de fazer frente aos espantalhos de enxovalhar vidas. Da minha consciência íntima extraio o dever de ser solidário com os meus semelhantes. Sem que para isso careça de vestir trajes forçados.

Ainda que a vida se possa fingir não me agrada.

11 julho, 2008

nem sempre se viaja com o corpo

(fotografia antónio paiva)

Só não viaja quem se resigna a não fazer mais do que cumprir deveres.

Bom fim-de-semana a todos ou boas férias se for o caso.