27 setembro, 2008

Caligrafia de instantes

A tarde acabou de entrar pela janela do costume, fazendo jurisprudência do hábito. A luz dá início à sua viagem pelas fissuras. E o texto começa a nascer na superfície das palavras. O pensamento viaja até à profundidade suprema, purificando o interior. Há palavras a aderir à página enquanto aguardam pela fulgurância do nascimento de outras. Conferindo ao texto a força e um brilho novo.
Nestes instantes de privilégio surgem as preferências do desejo. Organizam-se os espaços íntimos. Dissolvem-se verbos e predicados em fluxos latentes de preia-mar, nascem frases no espraiar das ondas murmurando palavras. Olhando esse mar fico suspenso na minha vida interior, enquanto as gaivotas despertam do sono tardio.
A minha vida está cheia de erros que me levam à escrita. Sou dependente das palavras, para colmatar um vazio lúcido que me habita. Este sonhar acordado de escrever mantendo a limpidez da página. O alcançar a pureza da escrita. Mas o enredo é sempre tão complicado.
Reúno fragmentos, caligrafia de instantes, a pele da minha pele. E alma toda. Tudo isto eu entrego de livre vontade à essência da palavra. E em cada página procuro desfazer o erro, tarefa árdua e muitas vezes dolorosa. Ainda assim muito mais gratificante do que a existência em estado precário e ensimesmado.

Agora vou até à fonte beber das palavras. O livro.

26 setembro, 2008

Classificados; Equilíbrio Procura-se

Muitas vezes sinto-me a escrever no cais do deserto. Ultimamente cada vez mais. Quase transporto frases e versos nas olheiras. São dúvidas, é o que são. Dúvidas. Esta coisa de transformar ideias, pensares e olhares em escrita, às vezes é um massacre. Uma coisa é um escritor em escombros, outra coisa é; por via de sarar as feridas, transformar a escrita em escombros.
Se tenho algo para dizer; preciso de o escrever. Mas dizer por dizer e escrever por escrever? Pois, é medíocre e só estreita a mente. E disso só pode restar o sabor amargo a remorsos inúteis. Valha-me a santinha da gaveta, que não me cobra promessas.
Estabeleço aqui uma pequena analogia; se temos de ir a um evento, de cujo programa de abertura consta uma maçadora intervenção de retórica, o melhor remédio é chegar atrasado. Evitamos desse modo ficar a bocejar por dentro. Por isso entendo que; se preciso de escrever alguma coisa, e no momento não sai mais do que escrita grossa. O melhor é adiar. Desse modo, não boceja a escrita, não bocejo eu, e evito o bocejo do incauto leitor.
Ainda que, a escrita não seja filha da exactidão de uma fórmula matemática, e passe tempos infinitos pendurada em cortinados de estética, há que evitar a todo o custo, transformá-la em qualquer coisa de carregar pela boca. E dúvidas, muitas dúvidas.
A verdade é que todos nós temos os nossos momentos de temerosas cobardias, e os nossos momentos de coragem patética em exaltação. Dúvidas, muitas dúvidas. E somos tantos a errar por caminhos semelhantes, às vezes diferentes. O anúncio a publicar nos classificados; Equilíbrio Procura-se.

Pois é; fritar miolos.

25 setembro, 2008

O monopólio e o poeta adormecido

Há algo de inquietante que eu não consigo identificar e que me desconcentra. É como se eu vivesse de improvisos e desajustes. Um sonambulismo agudo e o futuro nunca mais amanhece. Ando a escrever os dias a lápis de bruma.
Diz-me tu, poeta adormecido; o porquê de tantas ruas desertas e dias tão cruéis? Tens razão. Tu não apostas na bolsa. Como haverias tu de saber. Se ao menos tivesses um poço de petróleo no teu quintal, podias jogar ao monopólio. Se as coisas dessem para o torto, o banco central injectava mais dinheiro e podias continuar a brincar.
Ardem em barris de petróleo os sonhos da grande massa humana. A fome dos mesmos de sempre, enche os odres dos especuladores impunes. Maldita cavalgada nevoenta que nunca mais tem fim. Caderno de raiva dor e morte, de páginas sempre a crescer.
Um dia os bancos e as bolsas habitarão todas as casas do planeta, e as pessoas habitarão a fome e as ruas. O universo da política e da finança, converteu-se ao exercício do assassinato e da ruína da vida das pessoas comuns. Cuja existência está transformada, num lento e doloroso roer do tempo. Até à agonia.
É este martelar constante nas bigornas da alma que não me deixa sossegar. Não me revejo na existência redonda de andarilho. Se me rasgam as veias bebo o sangue. Cerro a vontade e o pensamento, contra os fabricantes de imbecilidades e ásperos desdéns.

Todo o ser humano – o deve ser – quando mais cedo melhor.

24 setembro, 2008

Tenho fome

Tenho fome. Ponho a mesa para escrever. Abençoada escrita, pão feito de espectros amassados. Tem temperos de silêncios, meditações e recantos de solidão. É a vida em permanente combustão servida à mesa. A alma em prece e coração pendular.
Há silêncios a separar-me do mundo e gritos que dele me aproximam. Apetece-me colocar um lenço de névoa a vendar os olhos. Tantas são as vezes que perco os olhos ao vento.

Por aqui impõe-se a angústia do tédio organizado. Ouvi barulho lá fora, pareciam-me crianças. Fui ver; eram cães. A vida com os reservatórios vazios. O cheiro a fénico indica que a pureza foi desinfectada.

Muitas vezes mastigo croquetes de espanto, carregadinhos de gordura, a enjoar o futuro. É quando a vida vira verruga. Estranha coisa. Verruga. Os funerais são cerimónias organizadas para consolar os vivos. Não sinto qualquer desgosto se de mim discordarem.
O pior de tudo é quando vestimos a nossa mente de virgindade postiça. Um autêntico analfabetismo dos ardis da alma, e não há livros nem manuais que nos salvem. Uma vez cego; cego para a vida inteira. Mestre na geração de equívocos. Pobre homem. Estranha coisa.
Há uma corrente de pensamento que nos transforma em anões; curiosamente há quem goste. E não são tão poucos assim; são até muitos, mesmo muitos. Curiosamente.
Estão a ver? Lá estão eles a cochichar de novo, enquanto isso, tudo se escoa por entre os dedos. A vida no modo mais provisório que há. Assustadoramente infixável. O poder intimida os opositores, não há saber, mas há poder. Puxar pelos miolos é muito trabalhoso. É muito mais fácil intimidar. Reduzir o opositor a uma sombra, onde ele não caiba. Intimidar. Estranha coisa. Intimidar.
Hoje choveu a madrugada inteira, o dia amanheceu a sobrenadar noutra cor. O cão fartou-se de ladrar; tinha uma alma lá dentro. Do cão. Contristada a alma; e o cão também. A esperança devia tornar as pessoas mais jovens. Mas estão cada vez mais velhas. Deve ser mesmo falta de esperança. Das pessoas. Estranha coisa. Falta de esperança.
Que espírito de vagabundo o meu, sempre de um lado para o outro. A existir em permanente estado de protesto. Com a coçada mochila das palavras às costas. A escrita. Às vezes protesto comigo mesmo. E magico versos e frases para encurtar as viagens. Estranha coisa. Magicar. Que não arrefeça nunca, o sangue quente das palavras.

A maior invenção da humanidade foi a escrita; a penicilina da vida.

22 setembro, 2008

O caçador de palavras

O pássaro poisou no ramo do pinheiro junto à casa e cantou para dentro. Os sons têm o dom de mudar os olhos e os sentidos. Assim os dias reformulam os seus discursos. Neste espremer das dúvidas até fazer verter a indiferença das palavras. Nesta coutada de palavras, onde tenho um papel secundário, de caçador viciado, perseguindo as peças de caça, para que a magia aconteça. Uma ou outra vez lá acontece, o triunfo inesperado, a criação de um ou outro parágrafo de leitura.

A minha sorte é que posso azular os olhos o tempo todo, basta que eu queira. Com mais ou menos rigor, outra vida prossegue, outras vidas, é imprescindível. Não podemos ficar reféns de memórias amedrontadas. Ou eternamente temerosos do passo seguinte. A réstia de sol afaga-me as pernas enquanto eu aqueço as ideias. Quero-me filho insofrido do pensamento, onde busco a pureza dos sonhos. O meu cérebro invoca e articula outras alegrias. Gosto de perturbar as horas enquanto crio e não obedeço. Provoco o cio dos relógios em coito permanente com os segundos. Aqueles ponteiros febris sempre a copular o tempo, mas não o reproduzem, usam-no apenas de forma egoísta, profanando as pausas do homem. Mantenho secretamente aceso, este desejo de contrariar os relógios. Às vezes consigo. Chego primeiro. E minto-lhes descaradamente às gargalhadas.

São tantas as vezes, que os meus olhos se querem separar de mim para verem melhor. Sempre em busca da mesma claridade, que a minha sombra às vezes ofusca. Os meus olhos sabem que eu gostava de estar onde as palavras buscam alimento. É lá que quero ir, consciente de que é o melhor lugar para saber de mim e dos outros. Não gosto de ficar frio como as ervas nas manhãs de Inverno. Muito menos com o corpo vazio de emoções. Mas às vezes acontece-me. Procuro defender-me das feridas que saltam do corpo para alma, busco a cura no útero quente das palavras.
Sufoco solidões e medos que vagueiam em busca de um corpo, para lhe atormentar o espírito.

É com este orgulho, objecto longo das minhas memórias, que busco a plenitude da beleza das coisas, para a dissolver à superfície da alma. Extrair o precioso néctar que gosto de partilhar. Na ânsia de que o bebam e gostem. Não tenho a certeza se essa perfeição existe, mas busco-a, quero-a. Este jogo do peso das palavras, esta interpelação de mim e dos outros, onde nada é definitivo. Haverá sempre quem saiba recomeçar. Uma vida não se justifica pela justificação dos actos, tão pouco dos factos. Um processo de aprendizagem permanente, onde as palavras se defendem do orgulho. Nos extremos a dor coabita com elas e com a vida. Às vezes nada as distingue do silêncio, são apenas uma forma de o suavizar. Nelas respiro e me abrigo, as minhas mãos movem-se obedecendo ao meu pensamento, pela força das palavras. Convém lembrar que um coração tem duas faces, é a morada perfeita para a inspiração de um caçador de palavras.

Voa desejo! Voa querer! Voa que és livre!

19 setembro, 2008

Reflexões

Labirinto de letras, infinitas teias de palavras, umas vezes a desenhar movimentos de ternura, outras crucifixos de mágoa. De rosto mergulhado nos joelhos, adivinho o oceano de brumas. A necessidade de simular o exílio. De viver a solidão na sua plenitude, e não de a escrever. Não, não é a busca do sofrer, é, isso sim, a ânsia do saber.
Talvez a busca “da cura para uma enxurrada de sombras”, tal como escreveu Pessoa. A enxurrada dos meus passos à beira da minha sombra. Janelas tomadas de musgo pelo receio de as abrir. Tudo o que necessito de compreender antes de referir. O medo de trair as palavras na nulidade do respeito pela sintaxe, em vez de as deixar extravasar livres e dignas, à margem do torpor que me domina o corpo, e amolece o cérebro. A magnitude do seu bailado a deslizar no branco.
Há palavras que me recordam lugares e vivências. Me fazem sentir o mundo tal como o respiro. Me desenham a perfeição dos silêncios. E me surpreendem na suavidade quente de um sorriso. Contam-me histórias do meu tempo que outrora parecia infindável. Outras vezes penteiam estrelas enquanto me alertam do tempo que me resta.

16 setembro, 2008

Laboratório da genialidade

O que pode fazer um ser humano que paute a sua existência, por uma luta constante e séria, para não vender a alma ao diabo? Sim, o que o que pode ele fazer para manter intacto o arquivo do seu orgulho? Juro-vos por toda a verdade que possa existir à face terrena, que; em muitos momentos, o meu maior desejo era ser um cachorro destabilizador. Destituído de raça e classe, para despudoradamente alçar a pata e mijar na base dos candeeiros dourados, que enfeitam as secretárias dos iluminados, sindicalistas incluídos. Trabalhar é também; uma canseira insuportável.
Incompreensivelmente, apesar dos poderosos meios de informação ao nosso dispor, sabemos menos da verdade mundana que nos rodeia, do que da Bíblia. Ao que parece o segredo está na infusão de uns quantos livros de auto-ajuda. Um verdadeiro milagre dos séculos XX e XXI importado das terras do Tio Sam. Venham os livros que crença não falta. Ainda que algumas alminhas lhes apontem dois defeitos principais; o terem de ler e pensar um bocadinho.
Em muitas ocasiões a vida impõe um penteado de respeito, um fato desenxovalhado e sapatos engraxados. Pensando melhor; não é a vida que o impõe, mas sim um estigma social, com carácter quase científico. Desenvolvido no laboratório da genialidade, onde a flatulência apesar de ser coisa natural é persona non grata. Ah, o senhor é doutor de quê?

Há questões que não podem deixar de ser colocadas. Obvio.

O meu cão nunca ladrou ao vento

O cão ladrou-me do palco, um queixume canino, da cegueira provocada pelos holofotes. Queria ver as infantas alinhadas na plateia. Vestidas de extravagâncias levianas num saracotear suspeito, de ancas acorrentadas por doiradas trelas.
A matrafona habituada a conduzir os eventos, por força do cargo público que exercia na cultura, vociferou; alto!, aqui quem lê os poemas sou eu!, se não for eu, será quem eu determinar! Ou então ninguém lê! Já deviam saber quem manda aqui!
Os filisteus aplaudiram a matrafona de pé, quase roxos de exaltação. E, o cão não parava de ladrar, a matrafona não parava de ser matrafona, as infantas sem desalinhar, não paravam de saracotear, e os filisteus cada vez mais roxos, não paravam de aplaudir.
Havia um tipo careca, escrevedor de versos, antigo professor e político, um sacripanta de primeira linha, que invocava Deus a toda a hora, e desdenhava da beleza das mulheres despudoradamente, insultando-as. Pois segundo ele; elas são a principal fonte e culpa do pecado, por serem belas e mulheres.
Deviam ser puras e castas, sujeitas ao crivo da sua hipocrisia, para poderem ser; seres de direito. Nuas; apenas aos seus olhos. Purificadas pela sua baba nojenta e pegajosa. Não sei o que se passa; mas o cão não pára de ladrar.
Vou tentar que sossegue, tenho aqui um poema bem duro, em forma de osso, vou dar-lho. Pode ser que ele se distraia, e deixe de dar conta das inteligências rudimentares que o rodeiam. Curiosamente o cão deixou de ladrar, certamente por preferir um poema duro, a uma proeminente matrafona da cultura, ou ainda a um careca sacripanta, que escreve versos e já foi político.

O meu cão nunca ladrou ao vento.

15 setembro, 2008

O que faço eu aqui?

Aquela alma sentada no banco de pedra, como se tivesse deixado cair a vida, no chão de paralelos estacionados, por onde circulam os automóveis, e passam os passos calçados de outras almas, que não estão sentadas. E, não chove, mas aquela alma, tem o queixo caído, em cima das mãos esquecidas na ponta do guarda-chuva.
Não lhe vislumbro os olhos, estão tapados pela pala da boina, e não consigo adivinhar se estão abertos ou cerrados. Quem sabe o quanto lhe estará a chover dentro. Ou se por dentro já lhe habita o deserto; quem sabe. Eu fico ali a olhar, com vontade de lhe falar, mas com vergonha de dar os passos que me faltam até lá.
Os meus pés parecem crucificados no passeio onde me encontro. Olho ao redor em súplica de estarmos sós. E não, não estamos, suspiro um queixume mudo, talvez de alívio, justifico-me; se ao menos estivéssemos sós, eu teria coragem de me aproximar. Mas sei, que me minto naquele momento, mentindo-lhe secretamente.
Há embaraços quase doridos, amarrados por uma estranha sensação de culpa. A nossa e que herdamos dos outros. E há estátuas vivas, como a que está diante dos meus olhos, que sem um único gesto me apalpa todo o desconforto. Abrindo impiedosamente o armário da minha consciência. Como que a dizer-me; a tua culpa não está em pousio.
Comemoram-se quinhentos anos de existência da cidade, andam todos com a coleira erudita ao pescoço, e pelos vistos eu também. Se não fossem estas manchas humanas a expor incómodo tudo seria perfeito. Os detentores vitalícios da cultura exibem os seus dentinhos lúdicos. As entidades oficiais exibem os fatinhos de gala. O povo assiste porque sim. Ouvi dizer que Baudelaire estaria presente nas cerimónias, e faria a leitura de “ O Poema do Haxixe”. Solene. Muito solene.

O que faço eu aqui?