22 setembro, 2008

O caçador de palavras

O pássaro poisou no ramo do pinheiro junto à casa e cantou para dentro. Os sons têm o dom de mudar os olhos e os sentidos. Assim os dias reformulam os seus discursos. Neste espremer das dúvidas até fazer verter a indiferença das palavras. Nesta coutada de palavras, onde tenho um papel secundário, de caçador viciado, perseguindo as peças de caça, para que a magia aconteça. Uma ou outra vez lá acontece, o triunfo inesperado, a criação de um ou outro parágrafo de leitura.

A minha sorte é que posso azular os olhos o tempo todo, basta que eu queira. Com mais ou menos rigor, outra vida prossegue, outras vidas, é imprescindível. Não podemos ficar reféns de memórias amedrontadas. Ou eternamente temerosos do passo seguinte. A réstia de sol afaga-me as pernas enquanto eu aqueço as ideias. Quero-me filho insofrido do pensamento, onde busco a pureza dos sonhos. O meu cérebro invoca e articula outras alegrias. Gosto de perturbar as horas enquanto crio e não obedeço. Provoco o cio dos relógios em coito permanente com os segundos. Aqueles ponteiros febris sempre a copular o tempo, mas não o reproduzem, usam-no apenas de forma egoísta, profanando as pausas do homem. Mantenho secretamente aceso, este desejo de contrariar os relógios. Às vezes consigo. Chego primeiro. E minto-lhes descaradamente às gargalhadas.

São tantas as vezes, que os meus olhos se querem separar de mim para verem melhor. Sempre em busca da mesma claridade, que a minha sombra às vezes ofusca. Os meus olhos sabem que eu gostava de estar onde as palavras buscam alimento. É lá que quero ir, consciente de que é o melhor lugar para saber de mim e dos outros. Não gosto de ficar frio como as ervas nas manhãs de Inverno. Muito menos com o corpo vazio de emoções. Mas às vezes acontece-me. Procuro defender-me das feridas que saltam do corpo para alma, busco a cura no útero quente das palavras.
Sufoco solidões e medos que vagueiam em busca de um corpo, para lhe atormentar o espírito.

É com este orgulho, objecto longo das minhas memórias, que busco a plenitude da beleza das coisas, para a dissolver à superfície da alma. Extrair o precioso néctar que gosto de partilhar. Na ânsia de que o bebam e gostem. Não tenho a certeza se essa perfeição existe, mas busco-a, quero-a. Este jogo do peso das palavras, esta interpelação de mim e dos outros, onde nada é definitivo. Haverá sempre quem saiba recomeçar. Uma vida não se justifica pela justificação dos actos, tão pouco dos factos. Um processo de aprendizagem permanente, onde as palavras se defendem do orgulho. Nos extremos a dor coabita com elas e com a vida. Às vezes nada as distingue do silêncio, são apenas uma forma de o suavizar. Nelas respiro e me abrigo, as minhas mãos movem-se obedecendo ao meu pensamento, pela força das palavras. Convém lembrar que um coração tem duas faces, é a morada perfeita para a inspiração de um caçador de palavras.

Voa desejo! Voa querer! Voa que és livre!

2 comentários:

Vanda Paz disse...

Sabes, às vezes vejo coisas que me magoam. Tal como tu vês, tal como tu sentes, talvez por isso te compreenda. Existem os outros, aqueles que olham os desejos voar, mas não os vêm, aqueles que querem, mas não sabem o quê, por vezes nem tentam saber porque existem... nem param para pensar porque é que os outros também existem. A vontade de ver uma pedra é tanta que traduzem flores em pedras e atiram-nas ao ar... sei que me compreendes.

Atiro-te daqui a palavra "Amizade" vai voar livre, sei que a vais caçar e acarinha-la com o olhar azulado e soprá-la de novo até mim.

Abraço

Ana disse...

Gosto de perturbar as horas enquanto crio e não obedeço.

Se não se tratasse de ti, eu diria que sentia inveja. Dessa capacidade de criar e ser rebelde.
De soltar o desejo e o querer e dar-lhes o céu por limite.

Tratando-se de ti, não há inveja, há admiração e bem querer.