27 outubro, 2008

possível retrato de poeta

olhar de mármore
sede arqueada
alucinação do poeta
diverso inesperado antagónico
a génese do peregrino
um registo entre muros
no trilho saibroso da nossa cultura.

o verdadeiro não fala de chapéu na mão
mesmo que; por subtis razões éticas
a arte ausenta-se;
em todos os lugares onde o homem não é livre.


antónio paiva

18 outubro, 2008

Mundo depósito de erros

A sorte virou navio desertor sem cordoalha nem mastros tão-pouco bússola ou sextante e de leme quebrado é impossível o regresso a casa. Vive agarrado à ponta de uma seringa que um dia conheceu numa festa de amigos vespeiro de tentações promessas de inolvidáveis sensações que na realidade não passam de estrume. Agora todos os medos são inéditos uma vida crucificada na ânsia de obter a próxima dose que o vício não pode esperar. Viver no vermelho os espasmos físicos apoderam-se da mente dançando nas entranhas e a razão dispensa tudo quanto possa assumir forma de razoável e lúcido vida ou morte tanto faz é urgente a próxima dose a alma está seca e o vício sedento a vida é imprópria e se matar for o meio para atingir o fim ele pássaro volátil matará obedecendo ao vício.
Indiferentes os vindimadores de vidas vão fechando o cerco e alimentam-se da abundância podre gerada a partir de almas agarradas cachos em sangue que se anulam e oferecem para morrer antes do fim. Passivamente habitamos esta chuva ácida aliviando a consciência numa mera troca gratuita de seringas e no discurso encharcado de vómito liberaliza-se ou pune-se o consumo já de si uma prisão dentro ou fora delas o exercício da morte assistida no consumo assistido uma atitude vazia a conceber uma morte ironicamente higiénica.

O mundo é depósito de erros o homem a sua fonte maior
.

15 outubro, 2008

Pensamentos de algibeira e pouca monta

Faço algumas leituras desatentas, vulgo; leituras na diagonal. Por vezes não são nem mais nem menos; do que um estado latente entre uma ideia e o exercício da escrita. Estado esse que em geral, se me apresenta, como um exercício mental muito intenso e desgastante. Daí a minha necessidade de o aliviar.
Tenho de reconhecer que nem sempre foi assim. A minha abordagem à escrita tem sofrido alterações ao longo do tempo. Tempos houve, em que escrever, para mim se assemelhava ao acto de abrir uma torneira, e logo jorrava texto, fluido e despreocupado.
A isso não era por certo alheio, o facto, de nessa altura eu escrever sem pensar em algum dia vir a publicar. Vivia desse modo o gozo da escrita no estado mais puro e inocente. Se tenho saudades desse tempo? Algumas, claro que sim.
Até que um dia; por incentivos, muitos, e razões, diversas. Decidi publicar poemas e depois alguma prosa. Desde então, cada vez que escrevo, passo o tempo a protestar comigo. Ora em voz mansa. Ora em voz grave. Quantas vezes ralhetes irónicos.
Isto de transformar a minha escrita, em escrita para os outros, às vezes é quase trágico. Ainda assim, acaba por dar algum sentido, ao meu destino de pensar. Uma responsabilidade de transmitir calor, em muitas circunstâncias a tremer de frio.

Pensamentos de algibeira e pouca monta.

11 outubro, 2008

Alice está só

Alice passa o tempo a formar ilhas no seu quarto absurdo. Movimenta-se de um lado para o outro à espera do eco de existir. Parece aguardar alguém a quem perguntar as horas. Como se fosse urgente acertar o seu relógio da solidão.
Fala só. Para se certificar que existe, ouvindo o som da sua voz. Lá fora todos se acham normais, e respiram a crise financeira que invadiu o mundo. Alice suplica; por delicadeza inventem-me um tempo qualquer. Por favor; preciso de o habitar. Queria tanto falar. – Alguém me empresta as orelhas?
Os relógios habitam todos a mesma hora e Alice está só. Habita a hipnose do seu quarto absurdo. A recordar o futuro que haveria de ter. Só que o passado vergasta-lhe o presente. Se ao menos a beijassem por dentro. Pensa. Sentiria por certo a vida a poisar-lhe na cabeça como uma borboleta.
Mas não. Não a beijam por dentro e a sua vida habita um fungo. Uma náusea viva. Pesa uma tonelada obscena de tédio. A sua vida. Um velório de anedotas. Humor negro. Um labirinto de ruas pequenas com cheiro a urina e suor acre que vão dar sempre ao mesmo sítio. Um quarto absurdo onde Alice embala fantasmas.

Alice está só.

09 outubro, 2008

Um momento escrito a tinta permanente

Habita-me agora um halo de sossego, um estar isento de desperdício. A vida a correr leve, sem murmúrios inúteis. Um brando correr da alma. Aqui, agora, até a aragem é perfeita. Um momento sereno e recanto meu. É assim o perfume humilde do amanhecer.
Dentro e fora de mim tudo sinto por igual. Esta luz matinal serenamente a esculpir o mundo dos meus olhos. Sim, há momentos em que até a nuvem mais escura tem brilho. E aquela roupa branca a adejar no estendal, é a magia das memórias sem saudade, que me estão a bater à porta. Vou abrir.
O azul por cima do azul do oceano corou. Atmosfera alaranjada beijando o mar. E esta brisa de emoção que desperta em mim. Esta luz que entra dentro de mim. Como uma criança em viajante adulto acabado de chegar. É neste tempo que os relógios não sabem contar, neste espaço que não se mede, que a Vida me habita a alma.

Um momento escrito a tinta permanente.

08 outubro, 2008

Rabos-de-palha; todos temos

Passamos a vida a queixar-nos disto e daquilo. Mas depois; depois por comodidade ou cobardia, não tiramos as asas do armário. Há quem se dedique a pedir licença para existir. Uma espécie de liberdade acorrentada a palermices. O culto do medo de ter coragem.
Talvez tudo comece no gosto de mastigar azedas na infância. Que depois se prolonga no exercício de mudar prioridades. A fome cansada que se estende no sofá-da-lei-do-menor-esforço. A bebericar um chá de tenham-piedade-de-nós.
Na vida de casal os carros já são entregues com os maridos ao volante. Ainda há quem defenda que as meninas quando nascem, já deviam trazer um trem-de-cozinha. Nos restaurantes e bares, ao lado dos dísticos de proibido fumar, devia ser obrigatório a afixação de outros, com os dizeres; o homem é que paga a conta.
O melhor mesmo é esperar. Não acham? Embora não gostemos de esperar seja lá por quem for. Esperamos sempre que tudo o que desejamos aconteça; por obra e graça do Divino Espírito Santo. Espera-se o milagre que dissipe o nevoeiro do presente, e nos presenteie com um sol radioso no futuro.
Há a “ingenuidade” preguiçosa de acreditar; que a mudança de governo nos traga melhores dias. A realidade não se compadece com o desejo de chegar sem ter de ir. Lembram-se do “sonho americano”? Pois é; agora virou pesadelo para o mundo inteiro. Será que ainda acham que os sonhos não têm de ser construídos?
Podemos até encetar a existência de aranha, e esperar que tudo nos venha cair na teia. Ainda assim; convém não esquecer da necessidade de construir a teia. A rendição ao deslumbre pelo que fizemos ontem, significa que estamos a desperdiçar o precioso tempo, destinado à tarefa a executar no dia de hoje.

Rabos-de-palha; todos temos.

05 outubro, 2008

Conquistar palmo a palmo o que somos

Na cama onde não estou deitado, o meu corpo ainda dorme e eu continuo acordado. Oficialmente é domingo, e apesar de ser tarde, a lassidão do meu corpo, diz-me que é cedo ainda. Nesta lucidez torpe, a lentidão do meu pensamento, vagueia na inépcia, como se, estando, eu não estivesse aqui.
É neste bem-estar baço de inquietação estagnada, que vivo uma espécie de realidade tépida. Há uma réstia de sol que não aquece, um céu azul quase fingido. Lá longe, ao fundo do mar, há uma névoa que o vento não varre, por estar ausente.
Este olhar antigo que há muito conheço, tão antigo como a paisagem que me trás saudades. Os velhos montes, as árvores antigas e os velhos ribeiros, por onde continuo a chapinhar desde sempre, outrora despido de penumbras, e tudo eram paisagens transparentes.
Ao sabor de moer pensamentos, vou entretendo a espera de coisa nenhuma. Nem mais nem menos do que espreguiçar a existência. Em puro manifesto de direito à preguiça, que, em minha opinião, devia estar consagrado na Constituição, e na Carta dos Direitos Humanos.
Viver é um acto de intenção – ser – o pensamento é livre. A maior parte do tempo actos de impaciência da alma. Sem dúvida espelhados na face. Importante mesmo; é assumirmos a atitude de emancipação em relação ao tédio. O sermos nós sem condições.

Conquistar palmo a palmo o que somos.