Lugares de outros tempos
Fico
aqui, ao crepúsculo, com vontade de fazer chorar as palavras. Recordo a velha
ponte que atravessa o rio. Os salgueiros nas margens onde os melros faziam
ninho. Os milheirais de verdes e grossas espigas, que mais tarde aloiravam. O
pequeno anzol suspenso por um fio de nylon amarrado na ponta da cana-da-índia.
Foi há tanto tempo. Eu descia a serra, por ténues carreiros que serpenteavam os
troncos dos pinheiros. O destino era o Mondego, o rio. Uma linha de água
límpida, no leito do rio era possível ver o cascalho, pedrinhas de tantas
cores, delicadamente polidas pelas águas. À sombra dos salgueiros pequenos
barcos amarrados, eu pulava para dentro deles e fazia-os baloiçar. As águas
ondulavam em círculos que se alargavam até desaparecerem. Eu sabia que aquele
rio ia desaguar no mar, mar esse que eu nunca tinha visto. Imaginava-o do que
lia nos livros da escola primária. Se aquele barquito fosse meu, tal como eu
desejava, ia rio abaixo até à foz. A foz do meu imaginário. A foz dos meus
sonhos, um milhão de vezes maiores que o meu tamanho. Conheci esse mar, essa
foz, já com doze anos de idade. Foi o deslumbre, fiquei extasiado, aquele mar
imenso a perder de vista, aquele vai e vem das ondas que eu só conhecia dos
meus sonhos. A espuma beijava o extenso areal. Os meus olhos a saltar das
órbitas, o meu pensamento corria mais depressa que as minhas pernas. Aquilo era
tanto. Um miúdo da serra sentia-se filho do mar. Inesquecível! Ironia do
destino, hoje vivo rodeado de mar.
Apesar
disso, não esqueço as minhas origens, orgulho-me delas. Talvez seja por isso
que o mar sempre me recebeu tão bem.
Recordo
o cheiro dos pastos, das veredas, dos matos, dos pinhais. Os caminhos de terra
por onde conduzia o pequeno rebanho de cabras e ovelhas. Sei-os de cor. Os
sítios onde me sentava para devorar os poucos livros que conseguia arranjar,
todos eles dados ou emprestados. Era assim que passava o tempo enquanto
pastoreava o pequeno rebanho. Viajava nas páginas daqueles preciosos
companheiros. Tantas vezes os reli por serem tão poucos, mas cada vez que os
lia era como se fosse a primeira vez. Era por ali que fazia também os deveres
da escola. Entre uma espreitadela ao gado e as melodias do canto dos pássaros,
todas as matérias me pareciam fáceis e orgulhava-me disso. Nunca me sentia
cansado ou enfadado. Sabia de todos os lugares onde os pássaros faziam os
ninhos, espreitava-os às escondidas, via os ovos, mais tarde as pequenas
criaturas acabadas de sair da casca, o seu chilrear faminto, as idas e vidas
dos pais para os alimentar, mas nunca tocava nos ninhos. Sabia que as aves
enjeitavam os ninhos quando se lhes tocava. Eu que gosto tanto de pássaros, não
queria que aquelas inocentes avezinhas fossem abandonadas pelos progenitores,
por incúria minha.
Gosto
de recordar com orgulho, quando aos sete anos de idade, pedi à minha mãe que me
concedesse um pequeno pedaço de terra, para eu poder semear sozinho algumas
batatas. Ao que ela acedeu um pouco renitente, dando-me um pequeno rectângulo
de terreno sombrio e pouco produtivo. Eu não me importei, deitei mãos à terra e
às sementes, cavei, abri regos, coloquei as sementes, estrumei e adubei.
Satisfeito com o meu trabalho. Fiquei a aguardar o resultando, esperando com o
passar do tempo e visitando o local amiúde. Comecei por ver as frágeis folhas a
romper a terra, eu sorria de contente, foram crescendo ficando cada vez mais
fortes, até que chegou a altura de as colher. Eu, ansioso, peguei na enxada e
dirigi-me ao local e comecei a cavar cuidadosamente para não as estragar. Para
meu espanto e para o espanto de todos, eram batatas enormes e em boa
quantidade. Eu não cabia em mim de felicidade A partir dali nunca mais parei de
semear o que me apetecia, de plantar árvores.
Tal
como as árvores que fui plantando, também eu fui crescendo, hoje tenho um pouco
de todas elas dentro de mim. As minhas memórias são o suporte do meu presente,
a alavanca para algum futuro que eu possa ainda ter. Não que eu esteja preso a
memórias, mas guardo-as com muito orgulho e delas faço uso em muitos momentos.
Farei
sempre parte de um bando de aves, à procura de uma ilha que sabemos existir
algures. Não importa onde. Eu jamais farei parte de um presente ou futuro
gerados pela asfixia.
Agora
desculpem, mas tenho de ir.
in "Pedaços de Vida e Fantasia" 2009
in "Pedaços de Vida e Fantasia" 2009