in "Livro Imperfeito" - 2010
Os sons da música de Gheorghe Zamfir
adocicam este fim-de-tarde sombrio de um dia plúmbeo. A ferir os meus olhos, só
o branco nu desta folha de papel, a desafiar os meus pensamentos, sentados num
baloiço para cá e para lá, e eu sentado nesta cadeira a adivinhar o vento lá
fora. As minhas mãos desenham as teias do tempo, onde a vida me prende sempre
que me debruço no abismo. Ainda há pouco chovia copiosamente, agora amainou. Só
esta minha febre é que não baixa e as palavras correm tão devagar neste branco
feito de celulose. Ainda pensei em escrever o mais belo poema de amor, mas
desisti. Wagner já o dedicara a Isolda, e eu como sempre chego tarde, tarde
demais. Invejo a alma de Fernando Pessoa; “em
tudo quanto olhei fiquei em parte”, escreveu-o ele. Inteligente e mordaz,
José Gomes Ferreira escreveu: “Ah se eu
pudesse suicidar-me por seis meses!”. A verdade é que tudo muda, já
houveram tempos em que as guerras e os muros eram feitos de pedras. Agora
apedrejam-se as palavras e quem as ama, mas não é com pedras, é com insultos.
Eu,
eterno aprendiz da escrita, sobre quem as palavras exercem um fascínio
arrebatador, ofereço-lhes sempre a outra face sem qualquer espécie de
hesitação. Espero um dia delas obter o perdão e continuar a servi-las a vida
inteira. Só elas me favorecem a luminosidade do pensamento na fluência da sua
magia despida do óbvio. Quem é testemunha disso é a cadeira onde me sento e as
palavras me visitam.
Não resisto a recordar enquanto sorrio, isto
para além de me rir de mim, antes que, quem me ler o faça. Confesso que não
gosto de ser o último a ter esse privilégio, ainda que possa parecer um triunfo
patético, dele não abdico. Quero lá saber se o apelidam de um simulacro de
cinismo. Para me defender, já aprendi a esgueirar-me na pluralidade das
sombras. No início era apenas uma simples nuvem a que recorria, que com o tempo
fui aperfeiçoando e, hoje estou quase mestre.
Há quem teime em repetidamente chorar
lágrimas de amor sob forma de poesia, como quem morre de fome no vazio de uma
caveira, a verdade é que sempre foram os excessos que pariram a fome. Em
tempos, os poetas, quando tomados pela esterilidade colocavam uma flor na
lapela, amenizando assim o penar no deserto dos versos. Muitos dos de hoje,
relegam a poesia à inferioridade de um nariz comprido e, desatam trovejar
tempestades vazias, com versos enrodilhados em palavras de amor. O mais
importante no seu entender, é vomitar no papel, algo que se assemelhe a versos,
ao que eles mesmos, presunçosamente se encarregam de chamar poesia.
É por esta altura do texto, que me começam
de novo a martelar na mente, as sapientes palavras de José Gomes Ferreira; “Queria ter duas bocas: uma para beijar e
outra para comer. Assim, com uma apenas, só posso morder”. Não faço ideia,
até quando o tronco que me sustenta me acompanhará no nascer e pôr-do-sol, e
com ele a seiva das palavras me fará florir os olhos sem fadiga. Até quando a
abençoada chuva de sílabas fará verdejar cada linha, até lá, que os meus dedos
sequiosos de afagar cada letra, vivam sem repouso. Talvez eu tenha a fortuna de
não dar conta de o meu tronco secar, nem sentir a mente carcomida, muito menos
de sentir as dores do cerne de mim a apodrecer.
Se assim for, a
minha pausa entre memórias será gratificante, soberba.
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