20 dezembro, 2007

Em jeito de oração

Uns pés descalços e gretados doem muito. Uma boca descalça a sofrer em silêncio dói muito mais. Um corpo que definha até virar cinza. A dor desaparece, a morte corta como uma lâmina sem provocar dor. O que sangra dos teus olhos? A dor? Ou a evidência crua da traição? O teu quarto é o Inverno mesmo quando agonizas ao calor tórrido de África.

És recém-nascido, és uma criança de meses, és um jovem, um adolescente, um adulto, um idoso, não importa a tua idade. Empurram-te para os campos minados, para as areias do deserto. Atraiçoam-te, ferem-te até à profundidade onde nada se esclarece. O caminho da água é o desespero, envenenam as nascentes.
O coração do diabo comparado com o desses biltres é quase terno.

É insensato dormir escapando moralmente a estes crimes. Há os criminosos activos que executam a sentença de morte, mas não menos responsáveis os coniventes e passivos. Para estes últimos, a pena mínima, era a amargura instalada na própria carne, no próprio sangue. Um formigueiro de vergonha devia-lhes percorrer a pele, poro a poro, provocando-lhes uma sensação miserável. Tão miserável que lhes condenasse o pensamento a trabalhos forçados. Mais pesados que a insónia e a fome.

E o Vaticano Senhor?

Não acredito que concordes com toda aquela opulência e riqueza. Não acredito que concordes que a fé dos homens bons, a dor, a miséria, a doença, a fome e a vida de seres humanos, seja explorada para alimentar a vida palaciana dos teus representantes. A fausta mesa de pão e vinho que diariamente lhes é servida.
A cada movimento dos seus gulosos maxilares corresponde o choro de uma criança a morrer de fome, o desespero de uma mulher violada, um corpo trespassado por uma bala…

Não, Senhor, de facto não sou um fervoroso e devoto praticante. Mas respeito a fé de cada um, tenho a minha própria fé. Rezo muitas vezes à minha maneira. Na verdade quando escrevo algo como o que agora estou a escrever, considero uma oração, plena de fé, convicção e de razão. O maior templo criado por Ti é o Mundo, por isso em qualquer lugar do mundo, cada um de nós pode dar expressão à sua fé. Estou certo que concordas comigo.
Tenho muitos pecados, sei que tenho. Mas em nenhum deles está escondida a morte de ninguém. Nem tão pouco a indiferença. Sei que és sensato e não me queres perfeito. O que na verdade Tu queres é que eu e os outros não sejamos criminosos, quer por acção, quer por conivência.

Isso, eu tenho a certeza que Tu não queres mesmo!

8 comentários:

Maria disse...

Pudesse eu ter as tuas certezas, pudesse eu acreditar....
Adorei este texto, mas seria incapaz de o escrever.
Porque só sinto parte dele, não o sinto como um todo. E no entanto ele é um todo, teu....

Com o mesmo sentimento que tu, porque esse sei que é o mesmo, desejo-te, e aos teus, o melhor para 2008.

Beijos

rascunhos disse...

Este texto é tu,amigo!Daquilo que sei, me lembro e conheço...

São verdades inconvenientes que não podem deixar-nos indiferentes!

Que o teu Natal seja aquilo que desejas.

Até um dia destes.

beijo

Isabel Filipe disse...

António,

Não há limites para o homem que possui a capacidade de sonhar. É necessário muito pouco para provocar um sorriso e basta um sorriso para que tudo se torne possível.
Descobrimos que o Ano que termina vale a pena, quando começamos a enviar e receber os cartões de Natal. Afinal, de algum modo, aprendemos que o que realmente importa são os sentimentos, é o amor... É estarmos ligados, unidos. É isto que comemoramos: O nascimento da esperança de um mundo melhor. Muita paz, alegria e amor na tua vida e de todos que te são queridos. Feliz Natal! Feliz 2008.
Beijinhos
Isabel Filipe

*Um Momento* disse...

Meditando nas tuas palavras...

Deixo-te um beijo com o desejo de um Santo Natal

Tudo de Muito bom meu Amigo para ti e para os teus

(*)

Anónimo disse...

A tua oração chegou ao meu coração e comoveu-o. Tem de chegar mais alto...
Um abraço.
Continua a ter esses braços que adejam atrás dos sonhos e esses olhos que descortinam estrelas para lá das aparências mais tristes.
Porque há lugar para a utopia também.

Vanda Paz disse...

Às vezes penso que se retirassem uma coluna no novo santuário de Fátima... só uma... a quantas crianças davam de comer com o dinheiro dela?...

Um texto magnifíco

BF disse...

E que bonita oração António... juntei-me a ti na prece.

Beijinhos
BF

Fernando Vasconcelos disse...

Pois é António. Concordo consigo. Até sou católico relativamente praticante e crente (tenho os meus momentos de falta de fé, confesso) mas não posso deixar de concordar com o paradoxo da Igreja Católica Apostólica Romana e de algumas outras também, mas dessas outras que não são nossas fica-nos mal comentar.
Com a nossa tenho muitas vezes dificuldade em conciliar-me pela manifestação de riqueza face ao sofrimento ... e muitas vezes como hoje fico sem solução para o paradoxo a não ser na certeza da minha fé ... mas mesmo essa tem os seus momentos como disse. E agora que fazer? O que podemos fazer para que isto mude? Queremos que mude não queremos?