o devorador de trevas
- Ando à procura do meu gato – menti-lhe com a primeira ideia que me assomou à boca.
- E eu de um melro domesticado que me fugiu de casa – retorquiu sem pestanejar.
Encolhemos os ombros e fomos cada um para seu lado, acompanhados pelas nossas sombras, enquanto a lua dependurada nos olhava lá do alto.
Ela não sei quem era, eu sou um aprendiz de viajante nas trevas, tirando a casca das palavras, procurando no seu interior as respostas, como que esgravatando a terra com dedos subtis, gestos cuidados e suaves, não vá a qualquer momento surgir a preciosa caixinha das respostas e danificá-la por descuido.
Fazem-me falta a respostas para a dificuldade no equilíbrio na coexistência humana, basta um pequeno grão de pó, para que tudo deixe de funcionar nesta complexa máquina feita de pessoas. Os monstros rompem a casca, atravessam a pele, tomam conta do cérebro, da boca e dos braços das pessoas, comem-lhes o coração, estilhaçam-lhes a alma.
Um frio gélido e cortante, como o grito da hiena, bloqueia-lhes o pensamento, fazem uso das palavras como se de uma arma mortífera se tratasse, em vez de um bem precioso para comunicar, para semear sentimentos nobres e desinteressados, lá me vem à memória a palavra utopia, que tanto incomoda e constrange, porque sempre que não temos a coragem de assumir o que de melhor temos, a isso chamamos utopia.
Mas já é tão tarde e eu continuo por aqui a deambular, se ao menos o céu enorme ficasse cheio de milhões de estrelas, para eu as ver e me orientar, e a lua podia ficar verde, assim um verde-esmeralda, nem que fosse só por esta noite.
Despe-te de medos, despe-te de medos, sussurrava-me uma voz vinda não sei de onde, parecia-me um voz semelhante à de um devorador de trevas, já ouvira falar neles, nem sei bem a propósito de quê, mas ouvira sim, e pelo que ouvi a voz era parecida com o que me descreveram, dizem que se movimentam no espaço como estrelas cadentes, incansáveis lutadores, contra os fantoches que persistem na bordoada, nos insultos disfarçados de chilrear de passarinhos, mas que verdadeiramente são silvos de serpente.
Como seria bom que o sorriso das crianças se pegasse aos mais crescidos, apesar de cansado da caminhada estou bem disposto, só de me lembrar que as crianças sorriem como anjos, não digo isto por se tratar de consolação constrangida, não nada disso, digo-o porque o sinto verdadeiramente, até porque tenho guardadas em mim algumas imagens da minha meninice, onde o calção, o bibe e a sacola de ganga para levar a ardósia os cadernos e os lápis, eram para mim adornos de príncipe, pois amava-os como se fossem a minha própria pele e já tivesse nascido com eles.
Lá tinha as minhas nuvens, pois tinha, mas nada que um jogo de bola, ou cinco tostões para jogar na roleta dos rebuçados em dia de festa não resolvessem.
A madrugada já vai alta, enquanto eu caminho tranquilamente de alma agradecida, ao devorador de trevas que me acompanhou, bem sei que mal surjam os primeiros sinais do romper da aurora, ele continuará pelos céus fora, através das nuvens, roçando nas estrelas e beijando constelações, para um pequeno e merecido descanso, para voltar a reaparecer fantástico e brumoso, a um qualquer outro aprendiz de viajante nas trevas.
Obrigado devorador de trevas.