26 agosto, 2008

Naquele eu distante

Naquele eu distante habita um menino, veste fato-macaco de ganga azul barata. Feito pelas mãos de uma costureira de quem não me lembro. Tinha um bolso no peitilho para guardar os sonhos a estrear. Tapava um corpo franzino, de pernas esguias a correr atrás do arco.
Um par de olhos que voavam, duas mãozinhas irrequietas tal como a mente. Estou a vê-lo a trepar à ameixoeira por altura do Santo António, sentava-se num ramo e deliciava-se com aquelas suculentas ameixas. As borboletas e as abelhas eram suas companheiras de repasto.
Aqueles aromas tão intensos, o calor do Verão, aquele olhar azul sempre a pique para céu, naquele quintal do passado. Momentos tão breves como intensos, feitos de alegrias distraídas. Felicidade ingenuamente pura. O resto do mundo era bem mais pequeno que o seu. Um pequeno universo delimitado pelo tocar do céu nos montes circundantes. Mas tão suficiente para crescer e sonhar.
Havia nesse tempo uma avó, tão magra como o menino, vergada ao peso da idade, que lhe cozia pequenas broas no forno, recheadas com petingas e azeite lá de casa. Um petisco de lamber dedos e fermentar sorrisos de contentamento. Quanta gratidão avó Maria.
O menino cresceu, e tem agora tantos eus, muitos ainda meninos. E de tanto que é preciso para crescer, há um pouco de tudo, dentro dos meninos que cresceram dentro de mim, muitos ainda meninos. No Outono havia castanhas em Vale de Salgueiro.

Branco é o mural onde deixo as minhas confidências.

14 comentários:

Vanda Paz disse...

Gosto muito deste texto, muito mesmo e gosto muito de castanhas.

Beijo para todos os teus "eus"

Joana disse...

Querido Amigo-de-muitos-eus...

é bom viajar contigo pelos horizontes da memória. Encontro-te empoleirado nas árvores e passeio contigo nas margens do rio.
Juntos assobiamos aos passarinhos e já cheira a castanhas, cozidas em panelas pretas (do fumo) em casa da avó!

Beijo grande menino-grande, homem-poeta. O meu abraço.

Um Poema disse...

...

Como é deliciosa essa "felicidade ingenuamente pura", que tocou o mundo de tantos meninos que viveram (e talvez ainda vivam) em cada um de nós, e que tão superiormente sabes descrever.
Obrigado por partilhares connosco este pedaço da tua alma.

Um abraço

Zé Miguel Gomes disse...

O eu distante acaba por estar bem dentro de nós...

Fica bem,
Miguel

Anónimo disse...

As saudades dos aromas dos tempos idos e das recordações de tempos felizes, com a prsença dos nossos avós. Ainda havia felicidade e esperança para todos. O texto é magnífico. Boa semana com tudo de bom.

Carla disse...

...com este teu EU distante voltei à minha infância
que belo texto!
beijos

kurika disse...

Serena e suave a memória de tempos idos...tão bons, e tão despidos das coisas de agora como a maldade e a violência...

Lindas recordações, e escritas de forma tão bela!

Quem lembra assim...a vida corre de feição!

Um beijinho

Nilson Barcelli disse...

Também a minha avó era Maria e fazia broas recheadas com petingas...
À custa das tuas recordações da infância, também eu consegui ver os meus eus, alguns ainda meninos.
Excelente texto, gostei de ler.
Abraço.

tulipa disse...

Olá António

Estamos em Setembro e a palavra mais usada é a «rentrée»; fala-se de rentrée política e eu decidi falar sobre a «rentrée literária, sempre é um tema diferente.
Livros de pelo menos 16 escritores galardoados com o Prémio Nobel de Literatura, entre os quais José Saramago, vão ser lançados até ao final do ano em Portugal, o que constitui, se não uma raridade, uma marca de diferença desta "rentrée" editorial.

Também houve ontem a rentrée da chuva e parece já o Outono.
O que é importante é que estejamos com saúde para apreciar todas as rentrées à nossa volta.
É isso que desejo, muita saúde, paz, flores, poesia e miminhos.

Bom fim de semana.

impulsos disse...

Eu adorei conhecer esse menino, que me escapou naquele tempo...
Também eu subia, não para cima da ameixoeira, porque gostava mais de cerejas e era num dos ramos mais altos da velha cerejeira da eira velha, que me empanturrava até o meu estômago reclamar por mais não conseguir aguentar.
Quem me dera ter-te conhecido nesses tempos, ainda que de idades diferentes, talvez pudesse-mos brincar os dois e partilhar das mesmas ambições daquela altura,tão simples de conseguir!

Um beijo

Ana disse...

É no branco do mural que vejo os muitos meninos que há em ti e conheço os seus sentimentos.
É no branco do mural que relembro a menção à avó Maria no teu primeiríssimo post.
Um beijo.

Anónimo disse...

Felizes daqueles em quem ainda habita o menino que já somos e devíamos ainda ser. Boa semana com tudo de bom.

BF disse...

Muitos meninos dentro de ti .... com todos os sonhos e esperanças desses meninos que faltam em tantos de nós.

Beijo
BF

Ana disse...

Ah, como andam silentes, os meninos que há em ti, António!
Desde que andem felizes...