Naquele eu distante
Naquele eu distante habita um menino, veste fato-macaco de ganga azul barata. Feito pelas mãos de uma costureira de quem não me lembro. Tinha um bolso no peitilho para guardar os sonhos a estrear. Tapava um corpo franzino, de pernas esguias a correr atrás do arco.
Um par de olhos que voavam, duas mãozinhas irrequietas tal como a mente. Estou a vê-lo a trepar à ameixoeira por altura do Santo António, sentava-se num ramo e deliciava-se com aquelas suculentas ameixas. As borboletas e as abelhas eram suas companheiras de repasto.
Aqueles aromas tão intensos, o calor do Verão, aquele olhar azul sempre a pique para céu, naquele quintal do passado. Momentos tão breves como intensos, feitos de alegrias distraídas. Felicidade ingenuamente pura. O resto do mundo era bem mais pequeno que o seu. Um pequeno universo delimitado pelo tocar do céu nos montes circundantes. Mas tão suficiente para crescer e sonhar.
Havia nesse tempo uma avó, tão magra como o menino, vergada ao peso da idade, que lhe cozia pequenas broas no forno, recheadas com petingas e azeite lá de casa. Um petisco de lamber dedos e fermentar sorrisos de contentamento. Quanta gratidão avó Maria.
O menino cresceu, e tem agora tantos eus, muitos ainda meninos. E de tanto que é preciso para crescer, há um pouco de tudo, dentro dos meninos que cresceram dentro de mim, muitos ainda meninos. No Outono havia castanhas em Vale de Salgueiro.
Um par de olhos que voavam, duas mãozinhas irrequietas tal como a mente. Estou a vê-lo a trepar à ameixoeira por altura do Santo António, sentava-se num ramo e deliciava-se com aquelas suculentas ameixas. As borboletas e as abelhas eram suas companheiras de repasto.
Aqueles aromas tão intensos, o calor do Verão, aquele olhar azul sempre a pique para céu, naquele quintal do passado. Momentos tão breves como intensos, feitos de alegrias distraídas. Felicidade ingenuamente pura. O resto do mundo era bem mais pequeno que o seu. Um pequeno universo delimitado pelo tocar do céu nos montes circundantes. Mas tão suficiente para crescer e sonhar.
Havia nesse tempo uma avó, tão magra como o menino, vergada ao peso da idade, que lhe cozia pequenas broas no forno, recheadas com petingas e azeite lá de casa. Um petisco de lamber dedos e fermentar sorrisos de contentamento. Quanta gratidão avó Maria.
O menino cresceu, e tem agora tantos eus, muitos ainda meninos. E de tanto que é preciso para crescer, há um pouco de tudo, dentro dos meninos que cresceram dentro de mim, muitos ainda meninos. No Outono havia castanhas em Vale de Salgueiro.
Branco é o mural onde deixo as minhas confidências.
14 comentários:
Gosto muito deste texto, muito mesmo e gosto muito de castanhas.
Beijo para todos os teus "eus"
Querido Amigo-de-muitos-eus...
é bom viajar contigo pelos horizontes da memória. Encontro-te empoleirado nas árvores e passeio contigo nas margens do rio.
Juntos assobiamos aos passarinhos e já cheira a castanhas, cozidas em panelas pretas (do fumo) em casa da avó!
Beijo grande menino-grande, homem-poeta. O meu abraço.
...
Como é deliciosa essa "felicidade ingenuamente pura", que tocou o mundo de tantos meninos que viveram (e talvez ainda vivam) em cada um de nós, e que tão superiormente sabes descrever.
Obrigado por partilhares connosco este pedaço da tua alma.
Um abraço
O eu distante acaba por estar bem dentro de nós...
Fica bem,
Miguel
As saudades dos aromas dos tempos idos e das recordações de tempos felizes, com a prsença dos nossos avós. Ainda havia felicidade e esperança para todos. O texto é magnífico. Boa semana com tudo de bom.
...com este teu EU distante voltei à minha infância
que belo texto!
beijos
Serena e suave a memória de tempos idos...tão bons, e tão despidos das coisas de agora como a maldade e a violência...
Lindas recordações, e escritas de forma tão bela!
Quem lembra assim...a vida corre de feição!
Um beijinho
Também a minha avó era Maria e fazia broas recheadas com petingas...
À custa das tuas recordações da infância, também eu consegui ver os meus eus, alguns ainda meninos.
Excelente texto, gostei de ler.
Abraço.
Olá António
Estamos em Setembro e a palavra mais usada é a «rentrée»; fala-se de rentrée política e eu decidi falar sobre a «rentrée literária, sempre é um tema diferente.
Livros de pelo menos 16 escritores galardoados com o Prémio Nobel de Literatura, entre os quais José Saramago, vão ser lançados até ao final do ano em Portugal, o que constitui, se não uma raridade, uma marca de diferença desta "rentrée" editorial.
Também houve ontem a rentrée da chuva e parece já o Outono.
O que é importante é que estejamos com saúde para apreciar todas as rentrées à nossa volta.
É isso que desejo, muita saúde, paz, flores, poesia e miminhos.
Bom fim de semana.
Eu adorei conhecer esse menino, que me escapou naquele tempo...
Também eu subia, não para cima da ameixoeira, porque gostava mais de cerejas e era num dos ramos mais altos da velha cerejeira da eira velha, que me empanturrava até o meu estômago reclamar por mais não conseguir aguentar.
Quem me dera ter-te conhecido nesses tempos, ainda que de idades diferentes, talvez pudesse-mos brincar os dois e partilhar das mesmas ambições daquela altura,tão simples de conseguir!
Um beijo
É no branco do mural que vejo os muitos meninos que há em ti e conheço os seus sentimentos.
É no branco do mural que relembro a menção à avó Maria no teu primeiríssimo post.
Um beijo.
Felizes daqueles em quem ainda habita o menino que já somos e devíamos ainda ser. Boa semana com tudo de bom.
Muitos meninos dentro de ti .... com todos os sonhos e esperanças desses meninos que faltam em tantos de nós.
Beijo
BF
Ah, como andam silentes, os meninos que há em ti, António!
Desde que andem felizes...
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