ouves-me lucy?
somos tão trágicos quanto a tragédia que somos capazes de conceber, bebemos em silêncio um chá de tédio. logo hoje, precisamente hoje, acabaram-se as saquetas do teu adorado chá de menta. – vivemos sós!, sempre que os meninos estão a dormir, não é lucy? fazemos uso deste tédio antigo por incapacidade de o renovarmos, ou partirmos à descoberta de um novo. concordamos na estagnação porque tudo acontece na mesma. a filha dos nossos vizinhos acabou o curso superior, e nós nem precisámos de nos mexer. aconteceu.
que silêncio tão grave, a ferir-me os tímpanos só o eco dos teus pensamentos; na próxima semana tens de ir ao salão da bety e talvez faças umas nuances. serão ténues e discretas como um remédio inútil. – notas alguma diferença em mim? – o que foi que te aconteceu lucy? o teu olhar ficou sombrio e contraíste as maçãs do rosto, notei algum esgar de ódio nos teus olhos; repetiste – notas alguma diferença em mim? – lucy passa-se alguma coisa de grave contigo? – começo a ficar preocupado; – diz-me lucy? – és mesmo estúpido, não vês que fui à bety? ia responder-te mas só encontrei a porta a bater-me no nariz.
eu nem sequer conheço a bety. disse a mim mesmo. conheço é o cajó, o tipo que me apara o cabelo e me põe a par das merdas que se passam no futebol, e nos intervalos me fala das gajas boas que estão nas capas das revistas, que me dá a ler enquanto espero pela minha vez, depois pago a conta e saio, só volto daí a dois meses. sem nuances. já me basta a falta de cabelo que se agrava a cada dia. – lucy, diz-me; – alguma vez te perguntei se notavas alguma diferença em mim? não, porque sei que odeias o meu pentear, tanto quanto odeias as cores que escolho nas cuecas que uso. nunca me perdoaste o não te deixar escolher-me as cuecas.
ao longo destes anos todos sempre que te contrario em alguma coisa, há mais uma coisa que passas a odiar em mim. não suportas quando leio e ouço música clássica. sou um parvo com mania de erudito, assim me baptizas enquanto me vomitas mentalmente, sentada no sofá a folhear a elle, com o canal fashion ligado. é neste sono de dizer que anulamos a febre de ser, mastigando azedas que colhemos no vaso onde deitamos sementes e germina a tolerância anémica. é lucy, assim nos vamos suicidando aos bocadinhos; porque, supostamente para nós, nós são os outros, se não são, deviam pensar e sentir como nós, sendo nós.
ouvi-te pensar que este fim-de-semana levamos os meninos a casa dos teus pais. sim lucy eu ouço-te pensar. e levamos porque a semana passada levámos os meninos a casa dos meus. é nesta democracia paliativa que suportamos as nossas vidas e nos suportarmos. é a realidade de cada um de nós que nos impede de existir. tu não suportas os meus pais e eu não suporto os teus. os teus não me suportam e os meus não te suportam. espera lucy, estou a ser impreciso; o meu pai gosta muito da mãe dos seus netos, e acho que tu também gostas dele. agora sim, agora é que está bem, foi reposta a verdade inócua.
lucy agora experimenta ver se consegues ouvir o meu pensamento; é a ironia que nos impõe tarefas, e, no privilégio que nos é concedido por uma horrorosa reciprocidade. – sim lucy!, este fim-de-semana levaremos os meninos a casa dos teus pais. de outro modo colocaríamos em causa a monotonia das nossas vidas inconsistentes. e o tédio é o nosso sentimento mais bem definido. porque nos faz sentir culpados e a culpa nos faz sentir pena de nós. habitamos uma espécie de depressão, cujos ganhos secundários nos são preciosos. uma atmosfera de gozo trágico na excitação que o sofrimento nos proporciona.
que silêncio tão grave, a ferir-me os tímpanos só o eco dos teus pensamentos; na próxima semana tens de ir ao salão da bety e talvez faças umas nuances. serão ténues e discretas como um remédio inútil. – notas alguma diferença em mim? – o que foi que te aconteceu lucy? o teu olhar ficou sombrio e contraíste as maçãs do rosto, notei algum esgar de ódio nos teus olhos; repetiste – notas alguma diferença em mim? – lucy passa-se alguma coisa de grave contigo? – começo a ficar preocupado; – diz-me lucy? – és mesmo estúpido, não vês que fui à bety? ia responder-te mas só encontrei a porta a bater-me no nariz.
eu nem sequer conheço a bety. disse a mim mesmo. conheço é o cajó, o tipo que me apara o cabelo e me põe a par das merdas que se passam no futebol, e nos intervalos me fala das gajas boas que estão nas capas das revistas, que me dá a ler enquanto espero pela minha vez, depois pago a conta e saio, só volto daí a dois meses. sem nuances. já me basta a falta de cabelo que se agrava a cada dia. – lucy, diz-me; – alguma vez te perguntei se notavas alguma diferença em mim? não, porque sei que odeias o meu pentear, tanto quanto odeias as cores que escolho nas cuecas que uso. nunca me perdoaste o não te deixar escolher-me as cuecas.
ao longo destes anos todos sempre que te contrario em alguma coisa, há mais uma coisa que passas a odiar em mim. não suportas quando leio e ouço música clássica. sou um parvo com mania de erudito, assim me baptizas enquanto me vomitas mentalmente, sentada no sofá a folhear a elle, com o canal fashion ligado. é neste sono de dizer que anulamos a febre de ser, mastigando azedas que colhemos no vaso onde deitamos sementes e germina a tolerância anémica. é lucy, assim nos vamos suicidando aos bocadinhos; porque, supostamente para nós, nós são os outros, se não são, deviam pensar e sentir como nós, sendo nós.
ouvi-te pensar que este fim-de-semana levamos os meninos a casa dos teus pais. sim lucy eu ouço-te pensar. e levamos porque a semana passada levámos os meninos a casa dos meus. é nesta democracia paliativa que suportamos as nossas vidas e nos suportarmos. é a realidade de cada um de nós que nos impede de existir. tu não suportas os meus pais e eu não suporto os teus. os teus não me suportam e os meus não te suportam. espera lucy, estou a ser impreciso; o meu pai gosta muito da mãe dos seus netos, e acho que tu também gostas dele. agora sim, agora é que está bem, foi reposta a verdade inócua.
lucy agora experimenta ver se consegues ouvir o meu pensamento; é a ironia que nos impõe tarefas, e, no privilégio que nos é concedido por uma horrorosa reciprocidade. – sim lucy!, este fim-de-semana levaremos os meninos a casa dos teus pais. de outro modo colocaríamos em causa a monotonia das nossas vidas inconsistentes. e o tédio é o nosso sentimento mais bem definido. porque nos faz sentir culpados e a culpa nos faz sentir pena de nós. habitamos uma espécie de depressão, cujos ganhos secundários nos são preciosos. uma atmosfera de gozo trágico na excitação que o sofrimento nos proporciona.
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3 comentários:
Toda a gente bebe a sua taça de chá de tédio de vez em quando.
Hoje não bebi - fui ao cabeleireiro e não fiz nuances e nem perguntei a ninguém se notava diferença em mim: eu noto. E gosto. E vou por aí, com o meu penteado bonito, ao encontro dos outros, saboreando a vida.
Um grande abraço.
Sinais do tempo. Cada vez se vai vivendo mais as relaçõese m "estado paliativo", nesse estado entre a morte e a possivel volta a dar que nunca mais se resolve fazer.
Gosto de te ler desta forma:)
Um Beijo
agora, Lucy, ouve-me a mim também, só um segundo, consegues ouvir-me? não. não faz mal, podes ler-me ou a ti mais além: no além. qualquer dia não vais ter tempo para as nuances. que chatice essa coisa estúpida que é o tempo. chega na hora mais imprópria para nos atazanar o juizo. e a falta dele também. qualquer dia, Lucy, essa coisa estúpida que chega na hora imprópria e parte quando o queremos, vai avivar-te na memória que não vais ter tempo para ir à bety, nem para levar os putos a casa dos avós, nem para te chatear e bater a porta. nem para nuances. nem para o pensamento. e só te vais lembrar que a cor das cuecas era o menos importante. consegues ouvir-me, Lucy? consegues?! estranho, nem falei.
a ti não digo nada porque já sabes (quase) tudo. beijo
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