À conversa com Alves Redol
Bebo olhares pelas palavras, às vezes são apenas pingos de água na pedra que enfeita a nascente, tecendo factos à imagem das minhas ilusões. É também nas palavras que a vida dos homens se faz e desfaz. São muitas as noites em que me levanto e vagueio pelos quintais vigiando a criação. São quintais semeados de páginas e páginas, livros e livros. Uma dessas noites quis o acaso que me encontrasse com Alves Redol, lá para os lados da medida grande das palavras, nada mais, nada menos, do que quatro alqueires bem medidos perfazem a Fanga. No princípio olhou-me desconfiado, na sua pose austera, olhos vivos e de mitra na cabeça, lá estava ele observando a lezíria, fui-me chegando de mansinho, disse-lhe que na minha juventude o tinha conhecido acompanhado dos Gaibéus. Foi aí que ele me esboçou um leve sorriso de aceitação. Aos poucos a comunicação entre nós foi-se estabelecendo, disse-me a dada altura que; “não conhecia homens assépticos, desodorizados e incolores, que a existirem vivos seria horrível suportá-los na convivência…”. Eu disse-lhe; que lamentava ter de o contrariar, mas que conhecia uns quantos espécimes dessa natureza. Meneou a cabeça, ficou calado e pensativo. Há no entanto algo que ele me disse, com o qual concordo em absoluto; “Um escritor nasce todos os dias, insubmisso e firme, tanto para detectar injustiças, qualquer que seja a sociedade onde viva, como para repudiar o próprio ripanço que se apodera de alguns, quando aprendem, às vezes com verdadeira mestria, a fazerem quatro ou cinco pontos de croché.”
É, em minha opinião, muito gratificante estar perante um Mestre, não daqueles que o mercantilismo da palavra ou o amiguismo bacoco nos querem impor, mas daqueles que abnegadamente se fundiram ou fundem com a palavra, apenas com o intuito de a servirem, resistindo à patologia da vaidade imoral, de através dela se promoverem perdendo-lhe todo o devido respeito. Tive de lhe confessar que já era a terceira vez que lia a Fanga, quis no entanto deixar claro, que independentemente do valor social e político da sua obra, o que me fazia voltar de novo, era sem dúvida a sua delicadeza no trato da palavra. Sim, é para mim uma verdade incontornável, nos seus relatos da dureza da vida de homens, mulheres e crianças, as palavras são tratadas da mesma forma que nos momentos de alegria, são palavras tecidas de algodão e magia. Algo que só quem ama verdadeiramente a palavra é capaz de fazer. A sua linguagem é tão límpida, que dá a ilusão de a escrita ser coisa fácil. Puro engano. É tão difícil ser simples e belo, mas ao mesmo tempo tão delicioso.
Em determinado momento, talvez já cansado de ouvir o meu tagarelar, olhou-me nos olhos e disse-me; “Olhar o passado nem sempre será sinal de decrepitude, quero admiti-lo neste momento. Vou fazê-lo com o torpor do Inverno a carregar sobre mim todo o peso dos dias pardos em que nos deixamos afundar uns e outros. Nesta altura enferrujam-se-me as mãos, dói-me pensar, dói-me ter olhos, magoa-se-me a consciência por não saber ganhar braços, quando há tanto para construir…”. Perante palavras tão contundentes quedei-me pensativo. Passado algum tempo respondi-lhe apenas; tem toda a razão Mestre.
A verdade é que embora ele as tivesse proferido em determinado contexto, eu não consegui resistir à tentação de as transpor para outro plano. Ou melhor dizendo; de as espalhar como sementes da melhor qualidade no campo da escrita. Para que germinem e cresçam vigorosas construindo as defesas necessárias para que a palavra sirva o homem, sempre que este a estime, mas ao mesmo tempo que a palavra seja impiedosa e firme, quando este dela se aproveita despudoradamente em vez de a servir abnegadamente.
A madrugada ia longa quando o Mestre me disse que se ia retirar, mas não sem antes me deixar umas quantas considerações; “Conheço-me tão bem quanto possível. Nunca gostei de mim em demasia.” “O meu caminho tem sido duro; alegremente duro. Às vezes fico escalavrado, a sangrar, sem poder dar passada.” Mais adiante, a terminar, disse-me ainda; “ Em certos momentos ando pouco; algumas vezes pareço recuar. Não exagero, com certeza, se disser que caminhei em frente. Tanto mais que nunca pedi, nem aceitei, nem quero, a comparsaria dos que unguentam a triste a triste bazófia dos génios caseiros, pondo-os a bambolear como copletistas decrépitas ou como velhos ursos amestrados da minha infância. Nunca vi espectáculo mais degradante. Sou demasiado modesto, e também orgulhoso até ao desprezo, para que alguém me leve ao espelho dos bacocos. Todas as costelas que me arqueiam o esqueleto vêm de camponês e os meus antepassados sempre desconfiaram da fartura. É por isso que a minha charrua continua a lavrar num campo de pedras.” Dito isto acenou-me e foi-se embora. Eu, apenas consegui balbuciar um sumido; obrigado Mestre e até uma próxima.
Fiquei por aqui a meditar no silêncio da noite, porque a beleza das palavras me fazem esquecer o sono, e por ter consciência absoluta que para mim o campo da palavra, onde persisto dedicadamente em aprender a lavrar tem ainda muita pedra para separar da terra fértil que é a escrita. Toda essa pedra advém obviamente da minha falta de arte e engenho. Admito-o sem modéstia. Toda a salvação provém da tomada de consciência de que um naufrágio pode acontecer. Não me entretenho a tecer o futuro, pese embora o tenha sempre diante dos olhos. Não há em mim qualquer raiva contra o meu anonimato, é preferível ser anónimo do que contribuir para o caos. Importa-me tão-somente consolidar o meu sangue com o sangue da palavra. Todo o resto não passa de calores breves nas bocas de gente vulgar. Note-se que alguns até são condecorados, uns de forma socialmente mais alargada, outros no narcisismo de grupinhos, clãs e tribos.
Não me incomoda absolutamente nada, que apelidem de líricos os meus protestos, estarei sempre na primeira fila, denunciando o alimento feito de coisa nenhuma, com que escritores e poetas vorazes enchem os seus odres. Mais tarde ou mais cedo acabarão por morrer de enfarte, e a palavra e a escrita sobreviverão, naturalmente, por serem grandes e nobres.
A terminar direi; muito do que acontece e persiste, é porque comodamente viramos a cara e cerramos os olhos.
Os trechos do texto em itálico e colocados entre aspas, são excertos do texto “ À Maneira de Prefácio” da autoria de Alves Redol, publicado na décima primeira edição do seu livro “Fanga” editado pela Editorial Caminho com data de Janeiro de 1996.
É, em minha opinião, muito gratificante estar perante um Mestre, não daqueles que o mercantilismo da palavra ou o amiguismo bacoco nos querem impor, mas daqueles que abnegadamente se fundiram ou fundem com a palavra, apenas com o intuito de a servirem, resistindo à patologia da vaidade imoral, de através dela se promoverem perdendo-lhe todo o devido respeito. Tive de lhe confessar que já era a terceira vez que lia a Fanga, quis no entanto deixar claro, que independentemente do valor social e político da sua obra, o que me fazia voltar de novo, era sem dúvida a sua delicadeza no trato da palavra. Sim, é para mim uma verdade incontornável, nos seus relatos da dureza da vida de homens, mulheres e crianças, as palavras são tratadas da mesma forma que nos momentos de alegria, são palavras tecidas de algodão e magia. Algo que só quem ama verdadeiramente a palavra é capaz de fazer. A sua linguagem é tão límpida, que dá a ilusão de a escrita ser coisa fácil. Puro engano. É tão difícil ser simples e belo, mas ao mesmo tempo tão delicioso.
Em determinado momento, talvez já cansado de ouvir o meu tagarelar, olhou-me nos olhos e disse-me; “Olhar o passado nem sempre será sinal de decrepitude, quero admiti-lo neste momento. Vou fazê-lo com o torpor do Inverno a carregar sobre mim todo o peso dos dias pardos em que nos deixamos afundar uns e outros. Nesta altura enferrujam-se-me as mãos, dói-me pensar, dói-me ter olhos, magoa-se-me a consciência por não saber ganhar braços, quando há tanto para construir…”. Perante palavras tão contundentes quedei-me pensativo. Passado algum tempo respondi-lhe apenas; tem toda a razão Mestre.
A verdade é que embora ele as tivesse proferido em determinado contexto, eu não consegui resistir à tentação de as transpor para outro plano. Ou melhor dizendo; de as espalhar como sementes da melhor qualidade no campo da escrita. Para que germinem e cresçam vigorosas construindo as defesas necessárias para que a palavra sirva o homem, sempre que este a estime, mas ao mesmo tempo que a palavra seja impiedosa e firme, quando este dela se aproveita despudoradamente em vez de a servir abnegadamente.
A madrugada ia longa quando o Mestre me disse que se ia retirar, mas não sem antes me deixar umas quantas considerações; “Conheço-me tão bem quanto possível. Nunca gostei de mim em demasia.” “O meu caminho tem sido duro; alegremente duro. Às vezes fico escalavrado, a sangrar, sem poder dar passada.” Mais adiante, a terminar, disse-me ainda; “ Em certos momentos ando pouco; algumas vezes pareço recuar. Não exagero, com certeza, se disser que caminhei em frente. Tanto mais que nunca pedi, nem aceitei, nem quero, a comparsaria dos que unguentam a triste a triste bazófia dos génios caseiros, pondo-os a bambolear como copletistas decrépitas ou como velhos ursos amestrados da minha infância. Nunca vi espectáculo mais degradante. Sou demasiado modesto, e também orgulhoso até ao desprezo, para que alguém me leve ao espelho dos bacocos. Todas as costelas que me arqueiam o esqueleto vêm de camponês e os meus antepassados sempre desconfiaram da fartura. É por isso que a minha charrua continua a lavrar num campo de pedras.” Dito isto acenou-me e foi-se embora. Eu, apenas consegui balbuciar um sumido; obrigado Mestre e até uma próxima.
Fiquei por aqui a meditar no silêncio da noite, porque a beleza das palavras me fazem esquecer o sono, e por ter consciência absoluta que para mim o campo da palavra, onde persisto dedicadamente em aprender a lavrar tem ainda muita pedra para separar da terra fértil que é a escrita. Toda essa pedra advém obviamente da minha falta de arte e engenho. Admito-o sem modéstia. Toda a salvação provém da tomada de consciência de que um naufrágio pode acontecer. Não me entretenho a tecer o futuro, pese embora o tenha sempre diante dos olhos. Não há em mim qualquer raiva contra o meu anonimato, é preferível ser anónimo do que contribuir para o caos. Importa-me tão-somente consolidar o meu sangue com o sangue da palavra. Todo o resto não passa de calores breves nas bocas de gente vulgar. Note-se que alguns até são condecorados, uns de forma socialmente mais alargada, outros no narcisismo de grupinhos, clãs e tribos.
Não me incomoda absolutamente nada, que apelidem de líricos os meus protestos, estarei sempre na primeira fila, denunciando o alimento feito de coisa nenhuma, com que escritores e poetas vorazes enchem os seus odres. Mais tarde ou mais cedo acabarão por morrer de enfarte, e a palavra e a escrita sobreviverão, naturalmente, por serem grandes e nobres.
A terminar direi; muito do que acontece e persiste, é porque comodamente viramos a cara e cerramos os olhos.
Os trechos do texto em itálico e colocados entre aspas, são excertos do texto “ À Maneira de Prefácio” da autoria de Alves Redol, publicado na décima primeira edição do seu livro “Fanga” editado pela Editorial Caminho com data de Janeiro de 1996.
6 comentários:
Passeei com Alves Redol durante o meu tempo de estudante, ele ensinou-me a olhar e a compreender a beleza da Lezíria. Agora que voltei ao Ribatejo, e depois do que li do teu esplêndido texto vou voltar a levá-lo comigo, para matar saudades e passar uma longa noite de palavras com ele. Quem sabe se com o passar dos anos o meu olhar se tornou diferente.
Beijos
Isso é que foi uma valente insónia!!
Olha lá... mas tu andas assim pelos quintais alheios sem pedir licença aos donos?? Qualquer dia escreve-nos da prisa, estou a ver!
Alves Redol... há muito tempo que não o "vejo"... hum... tenho de ir vasculhar lá naquela bibliotecazinha...
Uma verdadeira lição de mestre para mestre.
Ganharam todos:
O mestre, o outro mestre (atacado de insónia),eu e vós,e os mais que vierem e lerem este texto.
As palavras e a simplicidade do ser, como pano de fundo de um texto simplesmente genial e com o qual aprendi mais um pouquinho.
Beijo
António, já estava de saída, quando um ligeiro passar de olhos pelas tuas pastagens que visitas me chamou a atenção um nome que lá está ainda. E digo ainda, porque talvez não saibas, mas essa menina que sonhava com o seu castelo encantado para lá das nuvens... morreu.Sim, a My Dreams deixou este nosso mundo, quem sabe para ir morar no seu castelo encantado... há já mais de um ano.
Hoje estou muito bem disposta, por isso quero apenas partilhar esta emoção deixando aqui um grande beijinho. Quero desejar-te uma excelente semana e agradecer as palavras e amizade que tens depositado no meu...caos.
Até breve!
;O)
"Fiquei por aqui a meditar no silêncio da noite, porque a beleza das palavras me fazem esquecer o sono"
Acontece comigo, também!
:)
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