Paragem
Estacionei o pensamento junto à velha árvore, estendi a toalha da existência sobre a relva, olhei a garrafa de vinho tinto deitada no cesto das dádivas, ela pareceu-me quase feliz. Atirei os olhos até onde me era possível, tinha aquela sensação de quem olha a caixa do correio vazia, quando espera correspondência importante que nunca mais chega. Pior do que isso, é que neste momento tenho a sensação que não devia escrever. Sei que ninguém se importa com isso, mas eu importo-me. Só que esta maldita bulimia das palavras não pára de me atormentar. Sou pior do que um viciado no jogo, as palavras passam à minha frente como cavalos desenfreados numa corrida sem fim, e eu não paro de jogar com elas, faço apostas atrás de apostas, raios, mas sinto que devia parar. Estou exactamente como o dentista, quando apanha um tipo esparramado na cadeira, não pára de apontar arranjos atrás de arranjos, como se o resto das nossas vidas fosse viver no consultório dele. Nestes momentos tenho a sensação que uma parte de mim estagna e a outra foge. Talvez seja a culpa a apertar-me cá dentro. Só que me dói e eu não gosto, estampa-se-me a crueldade no rosto.
Por este andar, qualquer dia não passo de um velho a regar malmequeres na varanda sem nunca ter escrito um romance. Às vezes convenço-me que a culpa é uma doença como outra qualquer. Nem sempre consigo reparar os meus erros, mas isso acho que ninguém consegue, penso; no intuito de me aliviar. Sei lá; obstrução versus confissão. Preciso de alimentar o corpo, porque se não o fizer a alma também é bem capaz de morrer, por isso não tarda vou comer qualquer coisa. Não sem antes pensar; qual a razão para toda a gente se achar especial, ou privilegiada, ou ainda isenta. O que sei é que todas as minhas análises não me isentam das minhas culpas. Há dias em que me sento surpreso nos meus pensamentos, já para não falar do modo como os problemas dos outros me privam do sentido de humor. Ainda assim escrevo poemas, será que o devo fazer? Não sei nem me apetece pensar nisso. Imagino como me sentiria, se um dia me pedissem para escrever um prefácio, para um livro de poemas de um poeta morto. Não sei se o faria, acho que não seria capaz, no entanto sei que há quem o faça com a maior das naturalidades. Há quem tenha o mórbido prazer de brilhar com a morte dos outros.
Frequentemente comparo a vida a um aeroporto, ninguém lá mora mas de algum modo todos por lá passamos. É certo que estamos em trânsito e nos movemos em diversas direcções, paramos tão pouco tempo, tão poucas vezes. Quando paramos parece que aguardamos sempre a bagagem que não transportamos connosco. Às vezes somos ou estamos tão vazios. Com o avançar da idade, ler a vida, é cada vez mais ler um livro ao contrário. Como que a olhar as cicatrizes dirigimo-nos sempre à última página, pelo menos ficamos a saber como acaba, caso não cheguemos a ter tempo para o ler por inteiro. Num universo de guerras intermináveis, são tantas as vezes que chegamos à conclusão; de que ainda nos amamos mas já não nos suportamos. Somos tão estranhos às vezes e outras tantas vamos além da bizarria. Talvez por isso, amiúde, a mãe natureza se zangue connosco e desabe tempestades sobre nós. O pior de tudo é que nunca mais aprendemos, e reagimos como se atendêssemos uma chamada telefónica originada por engano ou fruto de linhas cruzadas. Mas as máscaras vão caindo aos poucos, deixando a nu a espécie voraz, carregada de defeitos, de imbecilidade, de demências, de vinganças, de sadismo, de assassinatos múltiplos. A sociedade moderna criou espécimes que se devoram uns aos outros. Em duelos até à morte. Aproveito a paragem, abro a garrafa de vinho tinto e bebo.
- Eu sei o que sinto, e tu, sabes?
Por este andar, qualquer dia não passo de um velho a regar malmequeres na varanda sem nunca ter escrito um romance. Às vezes convenço-me que a culpa é uma doença como outra qualquer. Nem sempre consigo reparar os meus erros, mas isso acho que ninguém consegue, penso; no intuito de me aliviar. Sei lá; obstrução versus confissão. Preciso de alimentar o corpo, porque se não o fizer a alma também é bem capaz de morrer, por isso não tarda vou comer qualquer coisa. Não sem antes pensar; qual a razão para toda a gente se achar especial, ou privilegiada, ou ainda isenta. O que sei é que todas as minhas análises não me isentam das minhas culpas. Há dias em que me sento surpreso nos meus pensamentos, já para não falar do modo como os problemas dos outros me privam do sentido de humor. Ainda assim escrevo poemas, será que o devo fazer? Não sei nem me apetece pensar nisso. Imagino como me sentiria, se um dia me pedissem para escrever um prefácio, para um livro de poemas de um poeta morto. Não sei se o faria, acho que não seria capaz, no entanto sei que há quem o faça com a maior das naturalidades. Há quem tenha o mórbido prazer de brilhar com a morte dos outros.
Frequentemente comparo a vida a um aeroporto, ninguém lá mora mas de algum modo todos por lá passamos. É certo que estamos em trânsito e nos movemos em diversas direcções, paramos tão pouco tempo, tão poucas vezes. Quando paramos parece que aguardamos sempre a bagagem que não transportamos connosco. Às vezes somos ou estamos tão vazios. Com o avançar da idade, ler a vida, é cada vez mais ler um livro ao contrário. Como que a olhar as cicatrizes dirigimo-nos sempre à última página, pelo menos ficamos a saber como acaba, caso não cheguemos a ter tempo para o ler por inteiro. Num universo de guerras intermináveis, são tantas as vezes que chegamos à conclusão; de que ainda nos amamos mas já não nos suportamos. Somos tão estranhos às vezes e outras tantas vamos além da bizarria. Talvez por isso, amiúde, a mãe natureza se zangue connosco e desabe tempestades sobre nós. O pior de tudo é que nunca mais aprendemos, e reagimos como se atendêssemos uma chamada telefónica originada por engano ou fruto de linhas cruzadas. Mas as máscaras vão caindo aos poucos, deixando a nu a espécie voraz, carregada de defeitos, de imbecilidade, de demências, de vinganças, de sadismo, de assassinatos múltiplos. A sociedade moderna criou espécimes que se devoram uns aos outros. Em duelos até à morte. Aproveito a paragem, abro a garrafa de vinho tinto e bebo.
- Eu sei o que sinto, e tu, sabes?
14 comentários:
Não, nem sempre. Acho que nem sei quem sou. Posso também abrir uma garrafa de vinho mas esta não me pareceria nunca feliz. Seria eternamente sedutora, pois é o poder que o vinho tem sobre mim e , imitando-o, torno-me paixão. Minha visão de mundo pode distorcer-se, basta eu lembrar das estradas que passei...
Um beijo! Lindo texto!
Este teu texto é para... beber, como se de um bom vinho se tratasse.
E para reflectir.
Obrigada, António.
Beijos
Desejo-te sucesso ara a feira do livro.
Um texto plenamente poderoso!!
Um abraço
Amigo,
estacionei o carro longe e vim até aqui passar uns minutos contigo.
Eu também sei o que sinto, mas às vezes desejava não saber, porque numa equação, nem sempre os valores se conjugam correctamente e eu de números não percebo muito!
Beijinho grande e boa semana.
P.S. Não vens à Feira do Livro do Porto?
Caríssimos,
As guerras não são intermináveis e desde há 50 anos já temos mais cicatrizes que feridas, pelo menos aqui pela Europa.
Tudo isto há de ter um conserto e não é apenas concerto celestial.
O nosso destino é vivermos em fraternidade na nossa Pátria comum que não é outra senão o Planeta Azul.
" Aproveito a paragem, abro a garrafa de vinho tinto e bebo".
Eu sei o que sinto. E bebo um gole contigo, se te apetecer partilhar.
Não em honra da imbecilidade e da demência, mas da amizade, das coisas belas e das pessoas boas que ainda há por aí!
...algumas vezes, sim...Outras, não! Nessa rápida passagem, penso que o mais importante é termos consciência desse movimento...Perceber cada segundo, "ver" todas as coisas...
Gostei muito do seu texto...Gosto quando leio algo que me faz refletir!
Beijos de carinho e muita luz...
Em primeiro lugar...
Amei este texto/confissão...
Antes de te comentar li-o umas poucas vezes...
As palavras invadem-nos com uma "fome" voraz.
No meu caso algumas todas embaralhadas a ponto de não parar de escrever também...( não no blog , mas para mim, pessoalmente).
Há alturas que não consigo parar e isso assusta-me meu Amigo...
Não consigo compreender porquê , mas estou como tu... amo brincar com as palavras, o que não sei ao certo se é bom ou mau...
Apenas sei que o que escrevo é sentido ,mas não sei ao certo se sei o que sinto...
Complicado não é??
Obrigada por este texto...
Sem quereres ou saberes ajudaste-me a perceber que não só eu tenho este "vicio" de escrever seja lá de que tema for...embora também eu não fosse capaz de escrever prefácios sobre...ninguém.
Sou uma pequena amostra de "brincando com as palavras" e jamais teria coragem de brincar com o trabalho dos outros:)
Deixo um beijo enorme a ti meu Amigo que muito estimo!
(*)
um texto muito sentido com as palavras bem trabalhadas.
para reflectir!
beij
Gostei de te ler aqui...
desculpa não aparecer mais vezes, ando meia ausente...mas sempre que posso aqui venho para te ler.
essa do "velho a regar malmequeres na varanda" dá que pensar...
beijo amigo
Sei sei!!!! Sei que o vinho tinto devia estar muita bom!!!! :P
beijinhosssss
Não sinto o mesmo que mostras neste texto, nem tenho uma visão tão negativa da sociedade moderna.
Mas compreendo-te.
Mas gosto de um bom vinho tinto...
Abraço
Sei.
Sei que me sinto muito bem ao presenciar estas tuas apostas com as palavras. Na meta ambos são aplaudidos.
E quando escreveres um romance espero que ao lê-lo sinta todas as emoções que sinto quando por aqui passo.
Beijos
BF
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